Não nascem mais bebês com síndrome de Down na Islândia. A síndrome está
erradicada do país. O anúncio é dado ao mundo pelos islandeses com
orgulho. Mas falar em erradicação de uma síndrome cromossômica não é o
mesmo que falar em erradicação da zika. Problemas genéticos sempre
existirão entre nós. Só acabaremos com eles se fizermos peneiramento
genético nos fetos. Ou seja, temos de matar antes do nascimento os que
não se adequarem aos padrões genéticos normais. Erradicação aí é
sinônimo de aniquilação sistemática. O que a Islândia está dizendo ao
mundo é: “Aqui exterminamos sistematicamente todos os fetos que
apresentem os sinais da síndrome de Down”. Colocado nestes termos, o
fato já não é motivo para celebração, nem é uma realização científica. É
uma daquelas notícias que causam um frio na espinha e nos lembram que a
mentalidade que levou a Alemanha a exterminar judeus, ciganos,
homossexuais e aleijados nas câmaras de gás ainda está bem viva no mundo
hoje.
Para se chegar a um processo de aniquilação sistemática
de seres humanos considerados “não normais” tem de se criar um consenso
sobre o que é normal, o que é a vida humana digna. Normal e viável são
duas coisas diferentes. Uma mãe de um feto de 12 semanas pode receber a
notícia de que seu bebê não tem cérebro ou que tem uma má-formação no
coração ou pulmão que vai impedi-lo de viver se chegar a nascer. Esse
bebê não é viável, está condenado à morte por seus próprios problemas. O
conceito de normal, no entanto, é algo muito mais complexo; depende de
determinações culturais, de valores morais.
A ciência não pode
ser a principal definidora de normalidade, porque somos sujeitos a
problemas e variedades genéticas. Definir o “normal” é escolher um acima
de todos os outros. O regime nacional-socialista de Hitler definiu o
que era o ser humano “normal” por critérios que na época julgava ser
científicos. O normal era o ariano, alto, de olhos azuis, de intelecto e
forma física “superiores”.
De acordo com o que se sabe hoje, a
síndrome de Down não é uma doença. É uma mutação genética que produz um
novo tipo de ser humano. É um tipo mais fraco física e intelectualmente.
Mas quem conviveu com alguma pessoa com Down sabe que elas são
infinitamente mais doces, meigas, alegres e responsivas ao amor e ao
carinho do que nós, os “normais”.
Uma repórter da BBC, mãe de
uma criança com Down, produziu um documentário1 em que investiga as
causas dos abortos de fetos com Down, na Inglaterra, praticados em
números quase tão absolutos quanto na Islândia. O diagnóstico em si já é
99% preciso e não causa danos ao feto, e o plano do governo da
Inglaterra é administrá-lo obrigatoriamente a todas as mulheres
grávidas. Até agora 90% das mães inglesas que recebem o diagnóstico
escolhem abortar. O que leva todas essas mães a se recusarem a serem
mães de bebês Down? A investigação levou a documentarista a checar como o
diagnóstico positivo chega às mães. Tanto num país quanto no outro a
“informação” é quase coerciva. As mães recebem uma lista enorme das
possíveis doenças que o bebê Down vai contrair, das suas dificuldades no
aprendizado, do seu custo para a família. O quadro de terror não é
amenizado por testemunhos positivos, nem pela informação factual de que
hoje uma grande parte das pessoas com Down vivem vidas produtivas e
felizes.
Essa discussão é maior do que a ciência e atinge a
nossa noção de humanidade. Quem é o ser humano? Já me envolvi nesse
debate antes, quando trabalhei pelo término do infanticídio indígena.
Como definir o que é “pessoa”? O escrutínio, em muitas tribos, é tão
severo quanto na Islândia. As sociedades indígenas não têm acesso à
revelação cristã da imago Dei, de que todos os seres humanos têm igual
valor, criados por Deus para a sua glória.
A noção de pessoa
lhes é definida pelo custo social, não pelo valor humano. Parece-me que
nos reinos prósperos da medicina socializada do norte da Europa, tendo o
secularismo derrotado a Igreja em sua missão de definir moralmente quem
é o ser humano, hoje quem define é o Estado. E, claro, ele o faz
contando os custos. Na ausência dos valores cristãos, guiados pela mão
da ciência, não existe outro caminho a não ser um retorno inevitável à
barbárie.
Texto publicado originalmente na edição 365 da revista Ultimato.
Fonte: http://www.ultimato.com.br